O drama dos médicos que trabalham no sistema público de saúde brasileiro chegou às páginas do New England Journal of Medicine, uma das mais importantes publicações médicas do mundo.

Num artigo que foge ao tom técnico e soa mais como um desabafo, a professora e chefe do setor de unidade de terapia intensiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Flávia Machado, mostra o dilema ético provocado pela falta crônica de recursos, que força os profissionais a ‘brincar de Deus’ e escolher quem vive e quem morre. 

O caso real de uma mulher de 32 anos com falência respiratória serve de pano de fundo. Ela deve ou não ser submetida a uma oxigenação extracorpórea (uma espécie de pulmão artificial, conhecido pela sigla ECMO) – um procedimento caro, mas que pode ser a única chance de salvar sua vida?  Ou o dinheiro, em vez disto, deveria ser gasto em 1250 doses de antibióticos, que chegam a faltar até mesmo nos hospitais públicos da maior cidade do País?

Machado autorizou o procedimento, e a paciente morreu 24 horas depois. “Foi uma decisão baseada na emoção e não no racional, e foi a decisão errada”, escreveu. (Exatamente por conta do custo, o procedimento, ainda relativamente novo, não foi incluído na lista obrigatória de procedimentos do Sistema Único de Saúde – SUS).

“Por que fazer o procedimento? Porque, em nossas mentes, a morte vai ser o resultado claro e direto de negar o tratamento, enquanto a relação entre não dar os antibióticos adequados e a morte é mais indireta e menos óbvia?”, questiona, para então partir para uma questão maior. 

O SUS tem como princípio básico a ‘equidade’ – trata-se de reconhecer as necessidades de cada um e oferecer mais a quem precisa e menos a quem requer menos cuidados.

É um pilar da conduta médica, mas que no Brasil está sendo colocado em xeque pela falta cada vez maior de recursos. “Procuramos a igualdade, tratando todos os pacientes da mesma forma, ou a equidade, visando prover para cada paciente o que ele ou ela precisa? Se não podemos dar cuidados básicos para todo mundo, por que deveríamos dar a ECMO para alguns?”, pergunta Machado.

A melhor solução, segundo Machado, seria ter mais recursos — infelizmente, ela não aborda o problema da gestão dos recursos existentes, que tornaria seu artigo mais sofisticado. 

A médica relata que a crise econômica tem exacerbado uma situação que já era alarmante. Além da falta de leitos e pessoal, já comuns, agora faltam medicações e testes laboratoriais, relata Machado. Além disso, com o desemprego, mais de 1,8 milhão de pessoas perderam a cobertura de planos de saúde nos últimos 18 meses, aumentando a sobrecarga do sistema público. 

A médica chama atenção ainda para outra ‘jabuticaba’. Cada vez mais pessoas estão indo aos tribunais para garantir seu direito a algum tratamento de saúde – geralmente para conseguir um leito de UTI ou procedimentos caros – e o ônus está recaindo sobre os próprios médicos.

“Intensivistas tem sido ameaçados de prisão por não atenderem decisões judiciais, mesmo quando não há leitos de UTI disponíveis. Esse tipo de litigância está causando uma inversão de papéis: deveria ser o governo e não os médicos a assegurar que cada pessoa que precisa de um leito na UTI tenha acesso a um.”

Diante da falta de respostas, Machado resume seu dilema: “Como médicos, fomos ensinados a proteger a vida. Como administradores, precisamos considerar a melhor maneira de proteger tantas vidas quanto possível”.