A área técnica da CVM determinou que a Petrobras refaça e reapresente seus balanços de 2013 a 2015 para retirar o efeito da chamada ‘contabilidade de hedge’, uma prática que amortece as perdas com variação cambial em momentos de disparada do dólar.

Se levada adiante, a decisão fará com que a estatal apresente resultados ainda mais escabrosos. De acordo com estimativas publicadas pelo Valor há um ano, o prejuízo de 2015 mais que dobraria, de R$ 34,8 bilhões para R$ 70,8 bilhões. O prejuízo de 2014 passaria de R$ 21,7 bilhões para R$ 30 bilhões, enquanto o lucro de 2013 cairia de R$ 23,4 bilhões para R$ 15 bilhões. 

Pedro ParenteA Petrobras recorreu da decisão e agora espera um veredito da diretoria da CVM. A reunião para deliberar sobre o assunto ainda não está marcada, mas deve acontecer antes do fim do mês, já que a área técnica exigiu os novos balanços sejam apresentados junto com o de 2016, que pela lei tem que sair até 31/3.

A contabilidade de hedge (hedge accounting) permite que perdas com a variação cambial de uma dívida em dólar sejam mitigadas pelas receitas previstas com exportação. A lógica é que enquanto uma desvalorização do real pesa sobre as dívidas, ela tem efeito contrário sobre o faturamento.

Sem o mecanismo, toda a dívida em moeda americana é corrigida pela variação do dólar, e a diferença é contabilizada como ganho ou perda financeira, ainda que a maior parte deste passivo vença apenas no longo prazo.

Com o hedge accounting, a variação cambial sobre parte dessa dívida é “reservada” numa conta do patrimônio líquido e só passa para a demonstração de resultados quando a receita que serve como contrapartida é faturada. O resultado é menos volatilidade na última linha do balanço.

O mecanismo está previsto nas normas contábeis brasileiras desde 2010, mas seu uso pela Petrobras, que teve início em 2013, foi visto como um artifício para suavizar os resultados tenebrosos da gestão Graça Foster.

A decisão da CVM é consequência de um processo aberto no começo do ano passado a pedido de um ex-conselheiro da empresa, Mauro Cunha.

Cunha argumentou que — ao contrário de empresas como a BRF, que também usam o hedge accounting — a Petrobras é uma ‘importadora líquida’, e que o uso do hedge accounting apenas mascara o descasamento cambial, podendo fazer com que a companhia “seja obrigada a pagar dividendos obrigatórios ou participações nos lucros aos empregados, mesmo em situações onde seu endividamento exploda”.

Os conselheiros fiscais Reginaldo Alexandre e Walter Albertoni também deram votos contrários à aprovação do balanço em 2015, alegando preocupações em relação à prática.

A CVM acatou os argumentos.

“Temos a considerar que o procedimento contábil levado a efeito pela companhia […] não espelha a realidade econômica observada. A nosso ver, desvirtuou-se a essência econômica do hedge accounting migrando de uma política de proteção de risco para um mecanismo de diferimento de perdas cambiais, permitindo com isso aumento do lucro no ano de 2013 e redução dos prejuízos registrados em 2014 e 2015”, aponta o aparecer da Superintendência de Relações com Empresas.

A autarquia se apoiou em três pontos — primeiro e mais essencial, a Petrobras ser, de fato, importadora líquida e, portanto, “com fluxo futuro de saída de caixa líquido em dólares”.

Segundo, o fato de que, pelas regras contábeis, a operação deveria ser pensada para que a dívida servisse como proteção à receita em dólar esperada para os próximos anos e não o contrário. (A ideia é que, para um exportador, a queda no faturamento com a valorização do real seria compensada por um “ganho” com a redução na dívida dolarizada convertida para a moeda brasileira).

Por fim — e talvez o ponto mais grave — os testes conduzidos pela CVM mostram que as contas da Petrobras simplesmente não batem: o prazo das dívidas envolvidas no ‘hedge’ contábil não casa com a previsão das receitas.

“No demonstrativo em que apresenta as associações individuais das relações de hedge, os instrumentos de proteção tem vencimento significativamente posterior ao faturamento das exportações previstas (objetos de hedge)”, disse a Superintendência. 

Nas planilhas apresentadas pela petroleira, a CVM encontrou até mesmo dívidas já vencidos como instrumento de hedge para exportações futuras.

A decisão da CVM é uma dor de cabeça para o CEO Pedro Parente, cuja gestão goza de credibilidade no mercado e tem resgatado o valor da companhia na Bolsa. 

Ao tomar conhecimento da decisão, na sexta-feira passada, a Petrobras fez um apelo à CVM para que mantivesse a decisão da área técnica em sigilo até uma decisão final pelo colegiado. Alegando o risco de ‘prejuízos irreparáveis’, a Petrobras disse que “os referidos prejuízos não estarão circunscritos apenas à esfera nacional, ensejando sérios reflexos nos demais ordenamentos jurídicos em que são negociados os valores mobiliários da Companhia, especialmente pelo grave risco de que tal determinação seja interpretada como uma decisão final da CVM.”

A empresa também expressou o receio de que houvesse “uma incorreta associação da determinação do refazimento das demonstrações contábeis com os fatos relacionados à Operação Lava-Jato”.

No mesmo dia, a área técnica acatou o pedido de suspensão da decisão de republicação até o julgamento do recurso e remeteu a questão do sigilo à diretoria colegiada.

Ontem, o colegiado indeferiu o pedido de sigilo, citando uma norma interna da CVM que determina a publicidade no caso de pedidos de republicação de balanço.

O posicionamento definitivo da CVM sobre a prática terá repercussões para além da Petrobras. Empresas como a Braskem e CSN também adotaram nos últimos anos o mesmo mecanismo de ‘hedge accounting’. 

Em fato relevante, a Petrobras disse que “reafirma o seu entendimento de que utiliza corretamente a prática contábil de Contabilidade de Hedge e reitera que as demonstrações financeiras da Companhia relativas aos anos de 2013, 2014 e 2015 estão de acordo com as práticas contábeis adotadas no Brasil, assim como com as normas internacionais de contabilidade (IFRS) e foram auditadas por auditor independente que emitiu opinião, sem ressalva, de que as referidas demonstrações apresentavam adequadamente, em todos os aspectos relevantes, a posição patrimonial e financeira”.