Acostumado a rotular qualquer desafeto de ‘loser’ (perdedor), Donald Trump perdeu nesta madrugada o primeiro capítulo das eleições primárias dos EUA — em que cada partido escolhe seu candidato — no Estado de Iowa.Donald Trump

Trump, que distribui comentários pejorativos com a mesma naturalidade com que faz caretas, se viu forçado a um discurso humilde — absolutamente fora de padrão. Disse que ama tanto Iowa que talvez até compre uma fazenda lá.

Bullshit.

O ególatra-in-chief da política americana simplesmente odeia perder, e está xingando Iowa pelas costas por ter chegado em segundo lugar.

Para além do barulho que faz e da poeira que levanta, Trump é um sintoma de que algo vai muito mal na política americana.

Entre outras insanidades, ele prometeu construir um muro — “um grande muro” — entre os EUA e o México para impedir a imigração ilegal, propõe suspender a entrada de todos os muçulmanos nos EUA “até entendermos o que está acontecendo”, e destrata as minorias que o próprio Partido Republicano já concluiu serem imprescindíveis para que o partido retorne à Casa Branca depois de oito anos na casinha do cachorro. (Bônus: há alguns anos, Trump dava entrevistas jurando que Barack Obama nasceu no Quênia, e não no Havaí.  Pelo menos publicamente, nunca se deu por convencido do contrário.)

Que um candidato assim esteja à frente das pesquisas mostra o quanto o americano médio está precisando de um bode expiatório, uma catarse — ou melhorar de vida.

Trump não é parte do establishment Republicano. É um outsider da política, um livre-atirador a serviço de seu próprio ego que dirá qualquer coisa — anything — para ser eleito. Nos últimos dias, comprou briga até com a Fox News, a emissora quase-oficial do partido. Veteranos do Partido Republicano, como o Senador Lindsey Graham, prevêem que Trump é o candidato certo para perder a eleição, se for escolhido nas primárias. [A política americana é estruturada de forma que, nas primárias, vence o candidato que tem o discurso mais radical; na eleição geral, aquele que tem o discurso mais ao centro.]

Há ainda outro sintoma de que os americanos estão vomitando tudo o que os políticos tradicionais lhes alimentaram nos últimos anos.

O vencedor de ontem, o Senador Ted Cruz, também é um outsider — uma versão adulta daquele nerd que senta na frente, só tira 10, não consegue fazer amigos e é odiado pelos coleguinhas. Em 2013, recém-eleito, ele preferiu fechar (literalmente) o Governo dos EUA do que aprovar um orçamento que previa verbas para a nova lei de seguro de saúde, conhecida como Obamacare. A manobra acabou sendo impopular e irritou os colegas de Cruz no Senado.

O outro vencedor de ontem à noite foi Deus. Ele mesmo: o Criador.

Em seu discurso de terceiro colocado, o Senador Marco Rubio agradeceu a “Deus, o Todo Poderoso” e parafraseou a Declaração de Independência dos EUA, dizendo que “nossos direitos vêm de Deus, não do nosso Governo.” [Ok, não é bem assim. A Declaração diz que “todos os homens são criados iguais, e recebem de seu Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais se inclui a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”] Cruz também invocou Deus: “Nossos direitos não vêm do Partido Democrata, nem do Republicano… eles vêm do nosso Criador”, e disse que a responsabilidade do governo é apenas “defender” estes direitos (outra paráfrase da Declaração de Independência).

Deus não está na chapa, e a religião deveria continuar a ser o que sempre foi: uma questão de foro íntimo. Apesar disso, cada vez mais os políticos — aqui e lá — só falam d’Ele. Rezam, ajoelham, citam a Bíblia.

A fé move mesmo montanhas…  de financiamento de campanha.

Ainda que o universo de Iowa seja pequeno, a derrota de Trump foi simbólica, e vai despejar milhões de dólares nos cofres da campanha de Marco Rubio, o candidato republicano mais viável: além de jovem, ele consegue ‘conversar’ com uma minoria importante (os hispânicos) e desfazer a imagem do Partido Republicano como um partido muito branco e muito geriátrico.

Jasper Johns, 'Flag', 1954-55
Jasper Johns, ‘Flag’, 1954-55

Mas no Partido Democrata, a política tradicional também está com os dias contados. O Senador Bernie Sanders — que se autodeclara ‘socialista’ e pergunta frequentemente a seus eleitores se eles estão prontos para ‘uma ideia radical’ e até uma ‘revolução’ — teve ontem quase a mesma quantidade de votos que Hillary Clinton, a representante do establishment Democrata.

Seria fácil reduzir Sanders a uma caricatura — aquele tio maluco que vive dizendo que as coisas eram melhores “no meu tempo” — até porque o conserto que ele propõe para os EUA não é o mais refinado: ‘Vamos taxar os especuladores de Wall Street’ (seja lá o que isto signifique).

Mas este início de eleição nos EUA — com o favoritismo de Trump, Cruz e Sanders — convida a uma reflexão que também serve para o Brasil.

Além da própria natureza (radical) das primárias, há dois motivos para esta guinada aos extremos e seus discursos irracionais, religiosos e messiânicos.

Primeiro, o ceticismo das pessoas com a política profissional. Os eleitores se sentem cada vez menos representados no Congresso, onde as grandes empresas mantêm lobistas bem pagos que conseguem, eles sim, propor leis e direcionar as políticas públicas. E, entre os eleitores Republicanos, a percepção de que o Estado gasta — e taxa — demais.

Segundo, o ressentimento com a crise financeira global. No pós-2008, milhões de americanos perderem suas casas, aposentadorias e empregos. Apesar disto, ninguém em Wall Street foi punido, e não houve qualquer reforma significativa no sistema bancário que fosse digna deste nome. O setor financeiro continua vendendo produtos e serviços que são a própria definição de conflito de interesses, os reguladores continuam mansos, e a próxima crise provavelmente terá a ver tanto com os ciclos econômicos quanto com problemas não-sanados na estrutura dos mercados. (Isto sem falar no desaparecimento da classe média americana — aquela, dos filmes dos anos 50 — e o aumento da distância entre o 1% de cima e os 99% de baixo.)

Este ano, a Casa Branca pode ir para o tio maluco, o nerd raivoso ou o bilionário narcísico. Talvez eles sejam respostas legítimas a um sistema esclerosado; talvez sejam as respostas erradas. O fato é que o fracasso dos políticos tradicionais em conceber políticas públicas razoáveis, controlar o tamanho do Estado e reformar instituições falhas está gerando respostas até então improváveis no processo eleitoral.

E se a política em Washington está produzindo isso, imagine Brasília.